
Em outubro do ano passado declamei um poema dessa jovem poeta argentina, que conheci em minhas “andanças” pela internet, e disse que era uma das “vozes da delicadeza”. Afirmei ali que cada palavra, cada imagem, cada verso, estavam pensados para provocar-nos a brandura. De lá para cá, passados quase nove meses, e muitos outros poemas lidos e declamados nesse intervalo (só pra mim, diante do espelho…), tive a certeza absoluta, cabal, que Carina Sedevich é a própria Voz da Delicadeza!
Mas cuidado! Dizer que Sedevich é delicada em cada escolh uma, não significa dizer que sua poesia é sempre leve ou suave. A delicadeza de Sedevich reside em outro lugar. Mesmo quando trata de temas duros, ásperos, difíceis, a poeta argentina se esmera na escolha das imagens, busca lapidá-las como a um diamante.
Esse apuro em lapidar as imagens, quiçá se explique pelo profundo desejo de Sedevich em rechaçar o discurso preguiçoso da nostalgia do passado ou a projeção ingênua de um futuro idealizado, ambos sentimentos que negam a vida que deve ser vivida, o aqui e agora! Sedevich é uma poeta da vida a ser vivida no presente! Assim, nota-se o afã da poeta em não aceitar palavras e imagens pré-ditas, pré-fabricadas, aquelas que indicam caminhos “viciados” às leitoras e aos leitores, que nos projetam a um passado ou a um futuro deveras conhecido. Não, Sedevich quer “renomear” as coisas, segundo seu momento, sua vida, seu hoje!
Ora, no poema de hoje, é vísivel essa “renomeação” das coisas. Não me parece um acaso que Sedevich inicie seu poema com a imagem da “borboleta-monarca”, uma das borboletas mais estudadas do planeta, mas que pouca gente conhece a fundo. A Monarca tem como uma das suas principais características a duração de sua migração para lugares mais quentes, quando o inverno se aproxima das suas regiões de origem. Essa migração pode durar quatro ou cinco gerações, até que ela retorne ao Norte. Assim, Sedevich renomeia a persistência, a tomada de um caminho sem desvios, através dessa belíssima imagem. Mas há mais: a Monarca é uma borboleta venenosa e, bichos venenosos, como sabemos, costumam ser solitários. Sedevich vai assim renomeando imagens sem nomeá-las.
Acho belíssima também a imagem de que mãe e filha (suponho que são mãe e filha, pelas indicações do eu-lírico) são do mesmo tamanho quando “miram as árvores” ou vêem “a formiga enterrada na areia”. Quanta beleza para renomear a imagem dos corpos deitados, olhando para cima ou para baixo.
E, ao fim e ao cabo, o que podemos percorrer desse caminho que nos traça o eu-lírico, é a própria renomeação da maternidade, pois no último terço do poema nos deparamos com estes versos:
Conheço o mundo cruzando a vereda
até a floricultura da esquina
com a filha que não tive
pela mão
Sedevich nos vai revelando camadas e mais camadas das palavras e das imagens, da sua insatisfação com o já-dito, da sua inquietação com o senso comum. A poeta se arrisca, ousa, não teme o erro, que por vezes aparece, como parte de um processo que nega o lugar-comum. Gosto demais dessa ousadia e dessa inquietação!
E, além de tudo, como ela escreve bonito! Tudo, ritmo, sonoridade, escolha das imagens, absolutamente tudo está pensado para funcionar em completa harmonia, o que só pode provocar o que provoca: um êxtase de rara beleza. Sedevich é destas poetas que lemos e ouvimos quando começamos a crer que as coisas são feias. Ela é o antídoto da feiúra! ❤️🌹
“Desta vez, faço só a declamação em português. Em castelhano vocês vão ouvir a própria Carina Sedevich declamando seu poema!” 🌺
1 Mariposa monarca solitaria: el sol parece bajar lento, el viento parece correr rápido. Pero no tienen hacia dónde ir. Apenas una ruta señalada. -Hija, como dos pájaros domésticos unidos por un hilo y un anillo esta mañana nublada de noviembre andamos por el parque con los brazos desnudos. Somos del mismo tamaño cuando miramos las flores de los árboles, la hormiga que se pierde entre la arena. Tu corazón cabe en mi puño, pero también cabe el mío.- 2 Esta manzana debió ser de Blancanieves: dura como un músculo, tersa como un cristal, del tamaño de mi puño y de mi corazón, oscura como la noche si la noche fuese roja, mojada como los mares si el mar no fuera de sal. -Hija: estás en mis brazos. Con una de mis manos te alimento. Con la otra contengo un pájaro blanco, vaporoso en tu pulmón.- 3 Margaritas, crisantemos, astromelias. Conozco el mundo cruzando la vereda hasta la florería de la esquina con la hija que no tuve de la mano. -Sobre el mar, en Finlandia, llega al puerto una gran barca que se llama Eira. Hubiera sido un buen nombre para ella. Y ese azul mustio, que lo lame todo, hubiera sido el jugo de sus ojos. Hubiera sido blanda y alunada. Hubiera peinado su melena con agua.- 1 Borboleta-monarca solitária: o sol parece baixar lento, o vento parece correr rápido. Mas elas não têm para onde ir. Só um caminho marcado. -Filha, como dois pássaros domésticos unidos por um cordel e um anel esta manhã nublada de novembro andamos pelo parque com os braços desnudos. Somos do mesmo tamanho quando miramos as flores das árvores, a formiga que se perde na areia. Teu coração cabe no meu punho, mas também cabe o meu.- 2 Acho que esta maçã foi de Branca de Neve, dura como um músculo, lisa como um cristal, do tamanho do meu punho e do meu coração, escura como a noite se a noite fosse vermelha, molhada como os mares se o mar não fosse de sal. -Filha: estás em meus braços. Com uma das minhas mãos te alimento. Com a outra contenho um pássaro branco, fugaz no teu pulmão.- 3 Margaridas, crisântemos, astromélias. Conheço o mundo cruzando a vereda até a floricultura da esquina com a filha que não tive pela mão. -Sobre o mar, na Finlândia, chega ao porto um grande barco que se chama Eira. Teria sido um bom nome para ela. E esse azul turvo, que o lambe todo, teria sido a seiva dos seus olhos. Teria sido macia e aluada. Teria penteado suas madeixas com água.- (trad.: Marcio Funcia)